quinta-feira, 21 de novembro de 2024
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    O garimpo ilegal em pauta: da ficção à realidade

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    Por Flávia Silva Pinto

    A temática da mineração atualmente está nos holofotes não apenas na reprise de uma telenovela, mas especialmente em territórios indígenas. Conforme dados fornecidos pelo Greenpeace Brasil [1], após o início da pandemia da Covid-19 o aumento do garimpo ilegal em terras indígenas passou a ser uma das principais causas de destruição ambiental na floresta amazônica [2].

    Ademais, em pauta estão os conflitos entre garimpeiros e indígenas na Terra Yanomami, maior reserva indígena do Brasil. Cerca de 27 mil indígenas vivem na região, alvo de garimpeiros que invadem a terra em busca da extração ilegal de ouro. Os confrontos foram iniciados a partir da construção de barreira sanitária por parte de indígenas no Rio Uraricoera, a fim de reter materiais de invasores que seriam levados à garimpos ilegais na região [3].

    Acerca desse contexto, os incisos IX e XI do artigo 20 da Constituição Federal consignam que são bens da União os recursos minerais, inclusive os do subsolo, bem como as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. Por conseguinte, o artigo 21, inciso XXV, dispõe que compete à União “estabelecer as áreas e as condições para o exercício da atividade de garimpagem, em forma associativa”. O artigo 174, §§3º e 4º da Carta Magna, retoma o tema, do qual se depreende que o Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros.

    De acordo com Alexandre Santos de Aragão, os referidos parágrafos “especificam que a atividade de planejamento do Estado deve fomentar a organização dos garimpeiros em cooperativas” [4]. Assim, a lei estabelecerá regras proporcionais e razoáveis de preferência para as cooperativas de garimpeiros. Esse tema foi regulamentado pela Lei nº 7.805/1989, que, em seu artigo 14, prevê os requisitos a serem preenchidos para que as cooperativas tenham prioridade nos processos licitatórios. O Estatuto do Garimpeiro foi estabelecido pela Lei nº 11.685/2008. Nele, consta o artigo 12, que dispõe expressamente sobre as obrigações dos garimpeiros: “I – recuperar as áreas degradadas por suas atividades; II – atender ao disposto no Código de Mineração no que lhe couber; III – cumprir e legislação vigente em relação à segurança e à saúde no trabalho”.

    Paralelamente, a Constituição Federal confere ampla proteção aos índios, cujos direitos estão resguardados no seu artigo 231. Além disso, a Lei nº 6.001/1973 institui o Estatuto do Índio, que regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional.

    Vê-se, portanto, que é possível a realização do garimpo no Brasil. Contudo, o problema consiste no seu exercício ilegal, especialmente nos territórios indígenas. Quando praticado o garimpo de forma desconexa com a lei, arbitrária e violenta, flagrantes são os riscos ambientais e sociais.

    No que se refere ao contorno de proteção ambiental atrelado à prática de garimpo ilegal, a conduta criminosa está prevista no bojo do artigo 55 da Lei nº 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais) da seguinte forma: “Executar pesquisa, lavra ou extração de recursos minerais sem a competente autorização, permissão, concessão ou licença, ou em desacordo com a obtida”. Além disso, nas mesmas penas incorre quem deixa de recuperar a área pesquisada ou explorada, nos termos da autorização, permissão, licença, concessão ou determinação do órgão competente.

    Por outro lado, existem ilegalidades atreladas à proteção do patrimônio da União, uma vez que os minerais estão previstos no rol dos bens da União. Conforme disposição contida no artigo 2º, caput, da Lei nº 8.176/1991, constitui crime contra o patrimônio, na modalidade de usurpação, produzir bens ou explorar matéria-prima pertencentes à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo. Incorre na mesma pena aquele que, sem autorização legal, adquirir, transportar, industrializar, tiver consigo, consumir ou comercializar produtos ou matéria-prima, obtidos na forma prevista no caput do referido dispositivo.

    No ponto, relativamente à produção de bens, é preciso considerar que a exploração da matéria-prima é anterior à produção do bem. Por essa razão, de acordo com o artigo 177, inciso V, da Constituição Federal, constituem monopólios da União “a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados, com exceção dos radioisótopos cuja produção, comercialização e utilização poderão ser autorizadas sob regime de permissão”, a fim de que se tenha alcance sobre a produção de bens vedada na lei.

    Outrossim, na prática de condutas criminosas abrangentes aos dois tipos penais, é possível a aplicação de concurso formal de crimes e inaplicável o princípio da especialidade, consoante entendimento pacificado do Superior Tribunal de Justiça [5]: “(…) É inaplicável o princípio da especialidade entre os delitos dos artigos 2º da Lei nº 8.176/1991 e 55 da Lei nº 9.605/1998, porquanto tutelam bens jurídicos diversos: o primeiro protege a ordem econômica e o último, o meio ambiente. Aplica-se, ao caso, o concurso formal de crimes (…)”.

    Em relação ao crime previsto no artigo 55 da Lei nº 9.605/1998, a reprimenda legal é de detenção de seis meses a um ano e multa. Cuida-se de infração de menor potencial ofensivo, sendo possível a aplicação do instituto da transação penal e os demais benefícios da Lei 9.099/1995 [6]. Já a pena prevista no artigo 2º da Lei nº 8.176/1991 é de detenção de um a cinco anos e multa, ou seja, não se aplica a referida legislação. Neste caso, possibilita-se a adoção da inovação jurídica trazida pela Lei nº 13.964/2019, conhecida como lei “anticrime”, sobre o acordo de não persecução penal.

    O artigo 28-A foi incluído por meio da mencionada lei ao Código de Processo Penal e dispõe sobre a possibilidade de o Ministério Público propor acordo de não persecução penal, não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça. Sem qualquer julgamento, o objetivo do legislador foi proporcionar a reprovação e a prevenção do crime de forma necessária e suficiente, mediante condições ajustadas cumulativa e alternativamente (incisos I a V).

    Nesse sentido, vislumbra-se a possibilidade de aplicação desse instituto quando o agente responder pelo crime previsto no artigo 2º da Lei nº 8.176/1991, desde que respeitados os critérios previstos no caput e no §2º do artigo 28-A do Código de Processo Penal, devendo o acordo correspondente ser submetido à homologação do magistrado competente.

    Outro aspecto que chama a atenção atualmente diz respeito à conexão direta entre o garimpo ilegal e diversos outros delitos. A operação “marakata” [7], realizada em conjunto por Polícia Federal, Ministério Público Federal e Receita Federal, produziu elementos de prova que consubstanciaram denúncia oferecida pelo Parquet federal [8], em 2018, em face de sete pessoas por crimes em transações com pedras preciosas. De acordo com a acusação, “a organização criminosa praticou crimes de evasão de divisas, contrabando, falsidade documental e sonegação fiscal, bem como a lavagem dos recursos financeiros auferidos desses crimes. As investigações apontam que a quadrilha movimentou R$ 176 milhões” [9].

    Ainda segundo a acusação, o modus operandi, de maneira geral, se dava mediante o negócio de pedras preciosas e semipreciosas, com fornecimento de dólares no exterior para as operações de compensação paralela. Assim, os dólares provinham de pagamentos “por fora” de operações de exportação de esmeraldas e outras pedras para determinadas empresas, principalmente na Índia e em Hong Kong. Parte dos valores era internalizado no país pelo sistema de dólar-cabo invertido e usado para pagamentos em reais, também “por fora”, aos garimpeiros e atravessadores de pedras no mercado nacional [10]

    Portanto, tanto para a esfera de proteção ambiental como para fins de preservação do patrimônio da União, além da prevenção na utilização do sistema financeiro para fins ilícitos, é considerável que o tema seja trazido em pauta às seguintes atenções: 1) para atingir parte da população brasileira que não discute o tema habitualmente, ao menos a título informativo, ainda que por meio de telenovelas considerado seu amplo engajamento; 2) a fim de dar voz à outra parte que vivencia a problemática, como povos indígenas Yanomami [11], bem como às consequências da prática ilegal da atividade de garimpo.

    _________________________

    [1] Greenpeace Brasil. Em meio à Covid, 72% do garimpo na Amazônia foi em áreas “protegidas”. Disponível em: <https://www.greenpeace.org/brasil/blog/em-meio-a-covid-72-do-garimpo-na-amazonia-foi-em-areas-protegidas/>. Acesso em: 09 abril 2021.

    [2] FOLHA DE PERNAMBUCO. Garimpo ilegal aumenta em terras indígenas yanomami no Brasil, diz informe. Disponível em: <https://www.folhape.com.br/noticias/garimpo-ilegal-aumenta-em-terras-indigenas-yanomami-no-brasil-diz/177540/>. Acesso em: 09 abril 2021.

    [3] OLIVEIRA, Valéria; FERNANDES, Vanessa. Garimpeiros atiram contra Polícia Federal em região de conflito da Terra Yanomami. Disponível em: < https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2021/05/11/policia-federal-e-garimpeiros-entram-em-confronto-na-regiao-de-conflito-na-terra-yanomami.ghtml>. Acesso em: 17 maio 2021.

    [4] CANOTILHO, J.J. Gomes; LEONCY, Léo Ferreira; (Coords.). Comentários à constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 1927.

    [5] Nesse sentido: AgRg no AREsp 1156802 – SP, 6ª Turma, Rel. Ministro Rogério Schietti Cruz, j. 06.08.2019; AgRg no REsp 1580693 – RS, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, j. 05.04.2016.

    [6] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas: volume 2. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 638.

    [7] ESTADÃO. Lava Jato no Rio revela duas contas que giraram US$ 44 mi em cinco anos. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/lava-jato-no-rio-revela-duas-contas-que-giraram-us-44-mi-em-cinco-anos/>. Acesso em: 18 maio 2021.

    [8] MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Denúncia Operação Marakata. Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-imprensa/docs/pr-rj/denuncia-operacao-marakata>. Acesso em: 18 maio 2021.

    [9] MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Lava Jato/RJ: MPF denuncia sete por crimes em transações com pedras preciosas. Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-imprensa/noticias-rj/lava-jato-rj-mpf-denuncia-sete-por-crimes-em-transacoes-com-pedras-preciosas>. Acesso em: 18 maio 2021.

    [10] MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Lava Jato/RJ: MPF denuncia sete por crimes em transações com pedras preciosas. Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-imprensa/noticias-rj/lava-jato-rj-mpf-denuncia-sete-por-crimes-em-transacoes-com-pedras-preciosas>. Acesso em: 18 maio 2021.

    [11] INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Cicatrizes na floresta: garimpo avançou 30% na Terra Indígena Yanomami em 2020. Disponível em: < https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/cicatrizes-na-floresta-garimpo-avancou-30-na-terra-indigena-yanomami-em-2020>. Acesso em: 09 abril 2021.

    Flávia Silva Pinto é associada do escritório Cecilia Mello Advogados.

    Fonte: CONJUR

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