sábado, 21 de dezembro de 2024
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    POR TRÁS DOS DESASTRES E CONFLITOS DA MINERAÇÃO

    Publicado em

    Luiz Jardim Wanderley*

    Aceleração e queda no mercado global do setor estão associadas a afrouxamento da legislação ambiental e práticas das companhias que privilegiam o lucro em detrimento da segurança humana e da proteção ao meio ambiente.

    A mineração é uma atividade secular em terras brasileiras. Existe desde o século 16, quando os bandeirantes colonizadores encontraram os primeiros minérios de ouro nos arredores da atual região metropolitana de São Paulo.A atividade mineral foi propulsora de transformações representativas: abertura de rotas, formação de cidades, ocupação do território colonial e expansão da fronteira política. Sobretudo a partir do século 18, por conta da expansão da mineração de ouro e diamante em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso.

    Apesar da histórica e intensa relação com a mineração, o Brasil nunca discutiu tanto seus impactos como hoje, após os desastres sociotécnicos recentes decorrentes dos rompimentos das barragens da Samarco/Vale/BHP Billiton, em Mariana, e da Vale, em Brumadinho, ambas em Minas Gerais. Mas por que grandes desastres envolvendo a atividade mineradora têm sido cada vez mais comuns? De que forma a mudança no mercado global de minério está associada a esse cenário catastrófico e violento?

    Antes de responder a essas perguntas, é importante voltar no tempo para observar as estreitas e contínuas ligações da atividade com o país. O Brasil sempre teve papel de destaque no setor internacionalmente. Durante o século 18, foi o principal produtor de ouro no mundo: daqui saíram quase dois terços de todo o metal aurífero extraído no planeta. E, ainda hoje, o país mantém sua relevância global no setor. Em 2017, foi o segundo maior exportador de minérios, com 11% do valor total das exportações mundiais, atrás apenas da Austrália (28,5%) – segundo dados do Banco Mundial.

    A produção brasileira está em primeiro lugar mundial na extração de nióbio; segundo em bauxita e amianto; terceiro em ferro e estanho; e quinto em manganês. Em 2014, os minérios sozinhos representavam 13% das exportações brasileiras, mas uma participação no Produto Interno Bruto (PIB) de quase 5%.

    Mesmo com passado e presente conectados à mineração, a população brasileira não costuma se ver e se identificar como uma sociedade minerada. As exceções são regiões pontuais como Minas Gerais, cujo nome faz referência a uma pretensa vocação mineral ou mesmo à inevitabilidade da mineração como via para o desenvolvimento.

    Assim, sempre foi difícil promover um debate nacional sobre a questão da mineração, que foi sistematicamente tratada como um problema pontual, circunscrito à mina e sem maiores efeitos para a sociedade brasileira, como um todo. Isso até os desastres recentes, que contabilizaram centenas de mortos, desaparecimento de comunidades e enormes danos ambientais e mudaram os olhares dos brasileiros sobre a atividade, seus impactos e retorno à sociedade.

    O boom das commodities e os desastres
    Mas se a atividade está presente de modo tão intenso no país há séculos, o que mudou a ponto de desastres se tornarem mais frequentes? Nas últimas duas décadas, a mineração ganhou ainda mais escala de produção no Brasil, acompanhando o crescimento nos preços das commodities minerais no mercado internacional entre 2002 e 2011, período conhecido como boom das commodities.

    Para aproveitar a maior oportunidade de lucratividade com a comercialização de minérios, as corporações de mineração promoveram uma rápida expansão de novos projetos em novas regiões e a intensificação da exploração mineral em regiões historicamente mineradas.

    O Estado brasileiro foi um fundamental entusiasta do avanço das mineradoras, destinando empréstimos por meio de bancos públicos com juros baixos, concedendo isenções fiscais e flexibilizando legislações ambientais, sobretudo, por meio da aceleração do licenciamento ambiental e da inação em políticas de fiscalização e controle da atividade.

    Com a baixa regulação estatal, as mineradoras podem priorizar as decisões econômicas acima das de segurança, como a realização de estudos de impacto insuficientes e limitados, a promoção de procedimentos construtivos impróprios tecnicamente ou com o uso de materiais de pior qualidade, e até a promoção de operações irregulares ou mesmo ilegais.

    Talvez o exemplo hoje mais conhecido da população seja a escolha de técnicas mais baratas e perigosas, como as barragens de rejeito a montante, usadas em Mariana e Brumadinho. Nessa técnica, a barragem se eleva conforme a quantidade de rejeitos aumenta, apresentando assim maior risco de rompimento, se comparada a métodos mais seguros, como a disposição a seco sem barragens, em que os rejeitos sem água são colocados em pilhas compactadas, reservatórios ou antigas cavas abertas pela mineração.

    SISTEMAS DE ARMAZENAMENTO DE REJEITOS

    1. Barragem a montante
    Para levantar a barragem, é construído um dique inicial e, à medida que a quantidade de rejeitos aumenta, são feitos degraus sobre o dique em direção à lama. É o método mais barato e menos seguro.

    2. Barragem a jusante
    A barragem é aumentada na mesma direção para onde segue o fluxo dos resíduos. É um método mais caro e mais seguro.

     

    3. Barragem linha de centro
    Os degraus são colocados exatamente um em cima do outro, sobre o dique inicial. Método com custo intermediário e maior segurança.

    4. Armazenamento a seco
    Retira-se a água dos rejeitos, restando uma pasta grossa, que é colocada em pilhas compactadas, reservatórios ou antigas cavas abertas pela mineração. Os custos de implantação e operação são superiores aos das barragens convencionais, mas a segurança também é maior.

    Conflitos em alta com os atingidos
    Em consequência dessas mudanças, também cresceram, nesse período, os conflitos envolvendo as mineradoras e as comunidades do entorno da extração mineral ou aquelas afetadas pela infraestrutura de empreendimentos de transporte, beneficiamento ou disposição de rejeitos. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, o número de conflitos no campo envolvendo mineradoras saltou de quatro ocorrências, em 2004, para 58, em 2011, período em que ocorria o boom das commodities minerais. Anualmente, os conflitos seguem aumentando: foram 211 em 2018. Mas o que explica esse crescimento da violência ou pelo menos da percepção de violência pela sociedade brasileira?

    É fundamental compreender que a mineração é uma atividade geradora de elevados impactos e riscos socioambientais, que afetam,sobretudo,os trabalhadores e as populações situadas no entorno da atividade e de suas infraestruturas(ver ‘As maiores vítimas da mineração’). Desde a instalação ao fechamento de uma mina, as extrações minerais provocam contaminações, transformações das relações sociais e econômicas, alteração do ambiente natural e da paisagem, rompimentos de barragens, doenças e até mortes.

    Os rompimentos de barragens, por exemplo, não são fenômenos raros no Brasil e no mundo. Dados da pesquisadora canadense Lindsay Bowker identificaram, no último século, quase 350 incidentes com barragens no mundo, sendo 13 no Brasil. Além disso, o setor mineral apresenta alto grau de mortalidade, mutilações e adoecimentos entre os trabalhadores. O rompimento da barragem I, em Brumadinho, gerou o maior acidente de trabalho já registrado no país, com 270 mortos e desaparecidos, a grande maioria de trabalhadores diretos e terceirizados da Vale.

    Por essas características, a ideia de uma mineração sustentável é ilusória, tendo em vista a forte interferência social e ambiental e o caráter violento da atividade, que amputa a natureza e desestrutura as sociedades, em especial nos países periféricos situados no sul global.

    Se, em um primeiro momento, até 2011, o crescimento dos conflitos estava associado à expansão dos empreendimentos e à intensificação da mineração, apenas essa informação não explica tudo. Devemos acrescentar que, ao final desse ciclo de avanço da mineração e dos conflitos, identifica-se a emergência de movimentos e organizações sociais preocupadas com a questão mineral, como o Movimento Pela Soberania Popular na Mineração (MAM), o Comitê em Defesa dos Territórios Frente à Mineração e diferentes organizações não governamentais (ONGs). Somados a esses novos atores, antigos movimentos sociais e ONGs também passaram a se preocupar com os efeitos da atividade mineral, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), a Comissão Pastoral da Terra, entre outros. Dessa forma, os movimentos sociais organizados passaram a denunciar de maneira mais sistemática as mineradoras, levando ao aumento da identificação de conflitos.

    Minério em baixa, e a segurança também
    A partir de 2012, um novo cenário no mercado global de minério se instaura: os preços começaram a cair rapidamente, chegando ao ponto mais baixo em 2016. Nesse contexto de pós-boom, ou seja, de preços declinantes, alterou-se a natureza dos conflitos envolvendo mineradoras, em grande parte porque o comportamento corporativo e as características dos impactos causados pela mineração no país também mudaram.

    O crescimento dos conflitos, a partir de 2012, está fortemente associado aos grandes desastres socioambientais e outros impactos, expressões diretas da nova conjuntura de mercado. O rompimento das barragens de rejeito em Mariana (MG), Barcarena (PA) e Brumadinho (MG) é reflexo da violência das ações corporativas para compensar as perdas econômicas do cenário de depreciação dos preços dos minérios.

    Para garantir os lucros de curto prazo dos acionistas, minérios são extraídos de maneira ainda mais acelerada, minas e infraestruturas de apoio em condição de esgotamento são superexploradas e cortes significativos são feitos nos custos operacionais, em particular relacionados aos trabalhadores, segurança e programas de responsabilidade social. Por outro lado, o poder público, em contexto de crise fiscal com a queda das receitas, reduz suas já combalidas ações de fiscalização e ainda flexibiliza mais as legislações trabalhistas e ambientais no intuito de manter as mineradoras operando e para assegurar as arrecadações aos cofres públicos.

    A construção acelerada e as escolhas com viés econômico para atender rapidamente à lucratividade no período de boom, associadas ao comportamento corporativo e estatal no pós-boom, propiciam condições para mais impactos e tragédias ocorrerem.

    O futuro da mineração
    Mas quais são as perspectivas para a mineração e seus impactos ambientais? O Brasil já possui sérios problemas de fiscalização ambiental, que tendem a se agravar nos próximos anos. A Agência Nacional de Mineração (ANM), responsáveis pela fiscalização das barragens, e os órgãos ambientais federal (Ibama) e estaduais estão sendo gradativamente sucateados, sem recursos, equipamentos e pessoal suficientes para monitoramentos frequentes, necessários para o controle do comportamento das corporações mineradoras.

    Os governos, por outro lado, possuem relações problemáticas com mineradoras, que vão desde financiamento de campanhas (proibido em 2015) até a participação direta de ex-funcionários das corporações em cargos políticos ou de ex-agentes público se políticos contratados para trabalhar em empresas de mineração (fenômeno conhecido com porta giratória).

    Além disso, o processo de monitoramento das condições ambientais é promovido quase exclusivamente pelas próprias mineradoras ou por auditores contratados por elas, o que produz conflito de interesse em favorecimento das irregularidades das companhias e impossibilita maior transparência e controle social. No desastre de Brumadinho, por exemplo, identificou-se pressão da Vale sobre as auditoras para produzirem laudos atestando a estabilidade da barragem, apesar dos problemas encontrados durante o monitoramento.

    Tudo indica que o atual Governo Federal trabalhará no sentido de enfraquecer ainda mais as instituições públicas e populares de controle. O discurso político e algumas ações já tomadas vão no sentido de banalizar o discurso ambiental, inviabilizar o funcionamento democrático e participativo das instituições públicas e desmoralizar os servidores públicos. Além disso, conselhos públicos regulares e elaboradores de política pública já foram extintos ou desmobilizados.

    No Executivo e no Congresso Nacional, atreladas à falsa promessa de crescimento econômico, retornam propostas de maior flexibilização do licenciamento ambiental ou mesmo de auto licenciamento por parte das empresas, como o Projeto de Lei (PL) nº 3.729/2004, conhecido como ‘Lei Geral do Licenciamento Ambiental’, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 65/2012 e o Projeto de Lei do Senado (PLS) 654/2015. No caso particular da mineração, ganham força propostas de leis favoráveis à liberação da mineração em terras indígenas e em áreas de proteção ambiental restrita, como o PL n.º 1610/1996, sobre regulamentação de mineração em terra indígena, e os PLs37/2011 e 3682/2012, sobre liberalização da mineração em áreas de preservação da natureza.

    Nesse cenário, a Amazônia se torna uma região privilegiada para a instalação de novos empreendimentos mineradores, sobretudo por concentrar a maior parte das áreas onde atualmente é proibido minerar. O resultado, caso avancem tais propostas, será a expansão de uma mineração ainda mais desregulada e insegura, promotora de mais impactos e desastres socioambientais sobre ambientes e grupos sociais sensíveis e vulneráveis.

    As maiores vítimas do racismo mineral
    Os desastres e impactos socioambientais são desigualmente distribuídos na sociedade. Grupos mais vulneráveis, pobres, excluídos e com baixo grau de influência política sofrem de maneira desproporcional com as ações da mineração: trabalhadores (em especial, terceirizados), populações não brancas, comunidades tradicionais e mulheres. A desigualdade dos impactos é decorrente de escolhas de áreas de mineração que optam por colocar tais grupos em situação de risco e vulnerabilidade, exatamente por possuírem menos condições de contestação e por suas vidas serem consideradas de menor valor. Nos desastres recentes da Samarco e da Vale, as populações mais atingidas eram predominantemente formadas por pessoas não brancas, sendo 84,3% em Bento Rodrigues (Mariana) e 70,5% em Parque Cachoeira(Brumadinho).

    O uso de critérios racistas na mineração brasileira não é algo contemporâneo, mas sim estrutural da lucratividade dessa atividade. Foram, sobretudo, negros escravizados que deram suas vidas e força de trabalho para cavar dutos e desmontar morros na insalubre mineração aurífera do período colonial. Os povos nativos também sofreram com o avanço da fronteira mineral, que provocou a expulsão desses povos de suas terras e o encarceramento e o genocídio de diferentes tribos por bandeirantes e colonizadores. Vê-se que o racismo estrutural da sociedade brasileira, expresso na atualidade pelo racismo mineral-ambiental dos desastres, marca o passado e o presente da atividade mineral no país.

    *Luiz Jardim Wanderley
    Departamento de Geografia,
    Universidade Federal Fluminense

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