Passados 30 meses do leilão de onze áreas de sal-gema no norte do Espírito Santo, região que concentra a maior jazida conhecida do mineral na América Latina, dois atores fundamentais para a gestão do território seguem apartadas de qualquer consulta relativa às pesquisas autorizadas pela Agência Nacional de Mineração (ANM): a Área de Proteção Ambiental (APA) de Conceição da Barra e as comunidades tradicionais que vivem sobre e nos arredores das áreas leiloadas.
O leilão ocorreu em setembro de 2021, ao final de dois anos de intensa diligência do então deputado federal Felipe Rigoni (na época, no PSB/ES), que viu no colapso da Braskem em Maceió, cujo escândalo eclodiu em 2018, uma oportunidade para destravar o leilão das jazidas capixabas, descobertas na década de 1980.
Sua atuação junto à ANM fez parte da campanha política vitoriosa, inclusive, tendo se destacado como o segundo mais votado da história e o pioneiro cego a ocupar a Câmara dos Deputados. Mas em 2022, já alojado no União Brasil, onde hoje é o presidente estadual, foi derrotado nas urnas, recebendo abrigo no secretariado do governador reeleito, Renato Casagrande (PSB), assumindo a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Seama).
A nomeação foi alvo de protesto por parte do quadro técnico do Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema), autarquia vinculada à pasta. A Associação dos Servidores (Assiema) chegou a pedir ao governador que revisse a nomeação, considerando a performance ambiental questionável de Rigoni no Congresso. Mas, sem sucesso.
No leilão de 2021, foram arrematadas onze áreas, todas dentro da APA de Conceição da Barra ou em sua zona de amortecimento. Três delas foram rapidamente excluídas da fase de pesquisa (processos números 890083/1983, 890239/1981 e 890242/1981), atendendo à recomendação do Ministério Público Federal (MPF), por estarem dentro do Sapê do Norte, território quilombola que se estende pelos municípios contíguos de Conceição da Barra e São Mateus, formado por mais de trinta comunidades, muitas aguardando a finalização do processo de titulação no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) há mais de 10 anos.
Nas oito restantes, as empresas possuem o direito de “iniciar o processo de ingresso à área e realizar pesquisas minerais com a finalidade de identificar uma reserva mineral”, explica a ANM, acrescentando que “já foram iniciados trabalhos de pesquisa em áreas com alvará de pesquisa outorgado” e todos os processos são acompanhados por ela.
A Agência informa que quatro empresas estão nessa condição, sendo três com sede no Espírito Santo – Sal-Gema do Brasil LTDA, em Conceição da Barra; SG Brasil Mineração Ltda, em Cachoeiro de Itapemirim; e Dana Importação e Exportação, em São Mateus – e uma multinacional, a Unipar Carbocloro S.A.
Nos registros da ANM, a SG Brasil e a Sal-Gema do Brasil possuem autorização em duas áreas cada – 48076.896328/2021-00 e 48076.896329/2021-46; e 48076.896350/2021-41 e 48076.896351/2021-96; respectivamente – podendo explorar também boratos (SG Brasil) e areia (Sal-Gema Brasil), além de sal-gema.
A Dana está autorizada a explorar apenas sal-gema, de uma área (48076.896338/2021-37). Já Unipar Carbocloro também possui três autorizações (48076.896325/2021-68, 48076.896326/2021-11 e 48076.896327/2021-57), apenas para sal-gema.
Divergências em disponibilidade de áreas chama a atenção
Essas oito autorizações integram um grupo de “10 processos que efetivamente possuem autorização para pesquisa de sal-gema no ES na presente data [janeiro de 2024]”, afirma a ANM, ao informar a atual situação dos 38 processos sob status de “Autorização de Pesquisa” no Espírito Santo, que consta em seu site. Os demais 28, explica, “englobam aqueles com prazo para pesquisa finalizado e que entregaram o Relatório Final de Pesquisa. Ou seja, a pesquisa já foi realizada, alguns há mais de 10 anos, e ainda estão na fase de Autorização de Pesquisa pois o Relatório não foi aprovado”.
Todos os dez processos ativos estão no município de Conceição da Barra, alguns expandindo-se para o município vizinho de São Mateus, ao sul.
Comparando alguns mapas disponíveis sobre a região, algumas dúvidas prevalecem. Quais são essas duas áreas com autorização ativa para pesquisa, para além das oito leiloadas em setembro de 2021 e que não foram excluídas por recomendação do MPF?
No mapa da ANM com as dez áreas, duas delas, as mais ao norte (896298/2021 e 896299/2021), parecem estar justamente na área de influência da comunidade quilombola de Linharinho, uma das primeiras a obter certificação da Fundação Cultural Palmares (FCP) e que está com o processo mais avançado de titulação no Incra.
Outras três áreas também chamam atenção. Uma, por estar exatamente ao redor da foz do Rio São Mateus (896329/2021), cujo manguezal é o principal atributo natural que motivou a criação da APA, segundo informa o Iema.
Outra, com um desenho bastante recortado e, conforme mostra o mapa da APA de Conceição da Barra disponibilizado pelo Iema no Google Maps, está localizada bem próximo de um dos maiores conglomerados urbanos do litoral norte do Estado, que é a sede do município de São Mateus, tendo sua extremidade noroeste sobreposta a uma área urbanizada, incluindo o bairro Santa Terezinha e os campi da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes).
Uma quinta área também se destaca, por estar totalmente dentro de área marinha, no limite entre Conceição da Barra e São Mateus (896246/2021).
As demais cinco áreas do mapa são contíguas entre si e à área marinha. As duas mais ao leste (896326/2021 e 896328/2021) estão sobre a zona costeira e o que parece ser a área de restinga mais bem conservada da APA, incluindo a região da praia das Meleiras.
A oeste delas, duas se localizam bem em cima do rio São Mateus (896325/2021 e 896328/2021) e, aparentemente, sobre comunidades rurais. No mapa disponibilizado pelo site do Iema consta a Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Meleiras.
Uma última (896338/2021) não parece apresentar concentrações urbanas e se sobrepõe apenas a uma pequena curva do rio São Mateus. Aparentemente, está próxima ao limite leste da APA, não sendo possível, numa observação leiga, identificar exatamente quais elementos naturais estão presentes. No mapa de Mapeamento do Uso e Cobertura da Terra que consta no Plano de Manejo da unidade de conservação, essa última área de sal-gema parece conter uma importante faixa de restinga, brejo, apicum e florestas inundáveis, além de pasto e/ou solo exposto.
IEMA contradiz ANM sobre pesquisas em andamento
Em notas enviadas à reportagem, o Iema informou que “foram recebidas duas solicitações de pesquisa, que estão em análise no Iema e serão levadas para debate ao conselho [da APA de Conceição da Barra] posteriormente”.
Aparentemente contradizendo a afirmação feita pela ANM sobre as pesquisas, que indicam estarem as mesmas em curso, a autarquia ambiental afirma, em outra nota, que “até o momento, não existe área com pesquisa autorizada dentro da APA”, devido ambas as solicitações ainda estarem “em análise técnica”. As solicitações, prossegue a autarquia, foram feitas pelas empresas “Sal Gema do Brasil LTDA e Pedras do Brasil LTDA e as áreas estão nos blocos 1 e 2”.
O nome “Pedras do Brasil” não está na lista da ANM, mas consta em divulgação feita pela Federação das Indústrias do Espírito Santo (Findes) à época do leilão – quando comemorou o resultando e estimou um investimento de R$ 170 milhões pelas empresas, em três anos, apenas com as pesquisas – e também no documento de Arquivamento do procedimento do MPF que gerou a recomendação de exclusão das três áreas leiloadas dentro do território quilombola. Ambos coincidem na informação de que as quatro empresas vencedoras do certame são, além da Pedras do Brasil, Unipar Carbocloro, Dana Importação e Exportação e José Augusto Castelo Branco.
Obrigação de consulta prévia é questionado por empresas
O documento MPF é assinado pela procuradora da República Elisandra de Oliveira Olímpio, que informa o arquivamento do caso na data do dois de maio de 2023. Nele, a procuradora informa que “o presente procedimento foi instaurado a partir de matérias jornalísticas publicadas em setembro de 2021 pelo jornal eletrônico Século Diário com relatos sobre o leilão para permissão de pesquisa e concessão de lavra das jazidas de sal-gema no município de Conceição da Barra, ao mesmo tempo em que as Comunidades Quilombolas cujos territórios se sobrepõem às áreas de exploração concedidas não teriam sido consultadas a respeito da possível exploração mineral”.
As três áreas listadas pela Secretaria de Perícia, Pesquisa e Análise do MPF como sobrepostas ao Sapê do Norte são identificadas com os números de processos 890083/1983, 890239/1981 e 890242/1981. Em outubro de 2021, logo após o leilão, a Recomendação 1/2021-PRM/SAM/2º OFÍCIO foi envidada à ANM com orientação de suspender o trâmite das três áreas, “bem como de todo e qualquer processo envolvendo procedimentos de disponibilidade de áreas para exploração de sal gema, que possuam sobreposição com posse de comunidade quilombola ou com territórios quilombolas em processo de demarcação no norte do Espírito Santo”.
O ofício também recomendou à Agência que “realize atos para apresentação de consulta prévia, livre e informada aos afetados membros de comunidade quilombola, conforme prevê a Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho]”.
No mês seguinte, a exclusão foi aceita pela ANM (PRM-SAM-ES-00003608/2021).
Em resposta à decisão, o documento relata que a empresa Pedras do Brasil Comércio Importação e Exportação LTDA “apresentou manifestação, solicitando fosse homologada a proposta vencedora”, ao que o MPF respondeu que “não houve manifestação pela existência de impeditivo legal absoluto para a exploração das áreas. Recomendou-se, tão-somente nessa fase inicial, que fosse observada a necessidade de consulta prévia a comunidades tradicionais da área antes de qualquer autorização de atividades no local, conforme prevê a Convenção 169 da OIT e segundo precedente claro da Corte Interamericana de Direitos Humanos”.
José Augusto Castelo Branco também contestou a exclusão, porém somente em agosto de 2022, com requerimento formal de revisão da decisão em dezembro do mesmo ano. Sobre ambos pedidos o órgão ministerial manteve a posição de que “que a atividade de mineração em território de comunidades de remanescentes de quilombos demanda observância da Convenção 169 da OIT, com necessidade de criação de mecanismos de consulta livre, prévia e informada dos quilombolas”.
Entre as duas contestações, o MPF realizou reuniões com as comunidades do Sapê do Norte, a Secretaria de Estado de Direitos Humanos e a Defensoria Pública Estadual, em fevereiro e março de 2022, “quando se definiu que a ANM iria se reunir internamente para buscar uma melhor solução para dar maior participação dos quilombolas nas decisões sobre exploração das áreas concomitantes com seus territórios”.
Nesse sentido, em novembro, o MPF se reuniu com quatro representantes da ANM, “quando se obteve, mais uma vez, a informação de que as áreas suspensas em razão da recomendação ministerial foram definitivamente retiradas do Edital. Acrescentou-se que a Agência estudava a adoção de Protocolo para viabilizar a consulta livre, prévia e informada com as comunidades tradicionais em áreas a serem à mineração”.
Ao final do relato dos fatos, a procuradora Elisandra de Oliveira Olímpio afirma que “a irregularidade inicialmente constata foi corrigida com a acatamento da Recomendação do MPF pela ANM” e que “As áreas oferecidas no município de Conceição da Barra/ES para pesquisa e exploração de sal gema que continham, em seu interior, parcela de território quilombola foram retiradas do leilão [e] somente serão novamente oferecidas quando definido o protocolo que atenda à Convenção 169 da OIT”.
Assim, conclui, “a questão, portanto, foi solucionada” e o procedimento, arquivado.
FONTE: OBSERVATÓRIO DA MINERAÇÃO